sexta-feira, 8 de abril de 2011

ARTIGO

Comunicação social: a reforma necessária


Pedro Estevam Serrano


6 de abril de 2011 às 9:00h





O advogado e professor de Direito Constitucional Pedro Estevam Serrano, em sua coluna de estreia, escreve sobre mídia, líberdade de expressão e censura

É inequívoco que um dos direitos fundamentais que mais traduz valor inerente ao regime democrático é o da livre expressão do pensamento.

A dimensão mais relevante de tal direito para a democracia é, indubitavelmente, os direitos de informar e de ser informado.

Em nosso sistema constitucional democrático, a informação e a noticia são bens públicos de livre circulação. Ao Estado é vedado, salvo casos muito excepcionais, estabelecer qualquer forma de censura prévia, por ordem de qualquer de seus poderes, inclusive a jurisdição.

Tendo este pressuposto jurídico, de que se trata tal direito de cláusula pétrea de nossa Constituição e, portanto, imutável, intangível por qualquer reforma constitucional, cabe-nos as seguintes questões: existe algo em nosso sistema constitucional de comunicação social que deva ser objeto de alguma reforma? Pode tal reforma ser realizada sem atingir o referido direito à livre expressão, a informar e ser informado?

Alguns donos de veículos de comunicação têm se utilizado do argumento em favor do direito à livre expressão como forma de camuflar a existência no interior de nosso Texto Constitucional de dispositivos que atentam contra os mais comezinhos valores republicanos e democráticos. Dispositivos de sentido ético evidentemente questionável, que carecem de serem reformados, alterados, para corrigir evidentes distorções ocasionadas pelo lobby do setor na constituinte de 1988.

O regime jurídico da propriedade dos veículos de comunicação social é evidenciado facilmente.

Os veículos de imprensa escrita e de internet devem ser de propriedade privada. Têm tais veículos a prerrogativa profissional própria do jornalismo, de investigar e obter informações de interesse público livremente, bem como de divulgá-las. Além de poder veicular livremente opiniões sobre os vários aspectos da vida pública.

Um relevante limite constitucional a tais direitos de informar e opinar é o da honra e intimidade das pessoas, que devem ser com eles sopesados a cada caso concreto à luz de critérios de razoabilidade.

Outro limite mais sutil, mas não menos relevante, é o da qualidade da notícia, ou da produção da informação,inerente ao direito publico subjetivo de ser bem informado. Notícia não se confunde com opinião. Noticia é sempre um relato de um fato objetivo, e como tal deve ser produzida por técnicas e procedimentos jornalísticos que garantam a inocorrência de promiscuidade entre notícia e opinião.

Tal qualidade informativa deve ser controlada por regras éticas produzidas e aplicadas por entidades profissionais do jornalismo, o que se chama auto-regulação.

No tocante às opiniões, sua produção e circulação são livres. O que deseja nossa ordem constitucional a respeito é a vigência do valor da pluralidade, valor este que se aplica ao sistema comunicativo e não necessariamente aos veículos de imprensa escrita individualmente considerados.

Democracia na sociedade hiper-complexa que vivemos pressupõe pluralidade de opiniões, e tal pluralidade deve estar refletida em pluralidade de veículos pelo todo do espectro ideológico existente na vida política e social. Numa sociedade democrática, devemos ter veículos propagadores das diversas linhagens de opinião existentes.

Em nossa última eleição, verificamos nossas evidentes deficiências como sociedade em termos de democracia e pluralidade opinativa no campo da política. Embora muitas vezes escondendo opiniões partidárias atrás de hipócrita “independência”, nossos veículos majoritariamente se comportaram como partido político, chegando até a contaminar sua dimensão noticiosa com sua preferência óbvia por uma das candidaturas em disputa.

Em relação aos órgãos de imprensa escrita existentes, nada há que se fazer a não ser cobrar publicamente, no campo ético, que abandonem o pântano da hipocrisia declarando abertamente sua posição política e que garantam um mínimo de qualidade informativa em suas noticias.

Mas como sociedade nos cabe mobilizar os agentes sociais e econômicos, instigando-os a empreender mais órgãos de imprensa alternativos à visão ideológica dominante na maior parte de nossos veículos. Nossa democracia só amadurecerá com uma imprensa plural. Não há verdadeira liberdade de imprensa sem pluralidade ideológica.

Mas é importante ressaltar que tal pluralidade não pode ser imposta por ordem estatal. Trata-se de tarefa a ser desempenhada pelos agentes sociais diretamente, sob pena de comprometer-se a devida independência da mídia face aos poderes políticos.

Falta, contudo, tratar da questão que mais merece atenção do debate público, no que tange à produção de reformas em nosso sistema de comunicação social, qual seja a da propriedade dos veículos de rádio e televisão.

Ao contrário da imprensa escrita e de internet, por ser o espectro de sinal fisicamente limitado e por outras razões de nosso constituinte, os serviços de comunicação por radiodifusão sonora e de sons e imagens são titularizados pelo Estado. São, portanto, um serviço público, cuja prestação é realizada por particulares a partir de concessões estatais, conforme o artigo 223 de nossa Constituição.

Como é cediço às concessões de serviço público em geral, se caracterizam como contratos administrativos pelos quais o Estado transfere à iniciativa privada a execução dos referidos serviços, mantendo, contudo , sua titularidade. O concessionário é assim mero executor de um serviço cujo “dono” permanece sendo o Estado.

Em tais contratos vige regime jurídico absolutamente diverso das condições usuais nos contratos privados, razão pela qual doutrina e jurisprudência centenárias alcunham tal regime especial de “cláusulas exorbitantes”, por suas diferenças do regime contratual privado comum.

Esta natureza exorbitante se realiza por conta de uma das partes dos contratos de concessão, o Estado-Administração, representar o interesse coletivo enquanto o particular concessionário representa apenas seu interesse individual.

Por razões óbvias, nossa ordem jurídica privilegia o interesse coletivo representado pelo Estado, outorgando-lhe prerrogativas de autoridade no âmbito contratual, incidentes sobre a permanência da avença e sobre a estabilidade de suas cláusulas de serviço, só permanecendo intangível pela Administração as condições relativas ao equilíbrio financeiro da avença.

Assim, tais contratos podem ser extintos a qualquer tempo por ato unilateral da Administração, com ou sem culpa do concessionário, sendo certo que se não ocorrente referida culpa o concessionário será indenizado pelos danos que sofreu e pelas perdas decorrentes dos lucros cessantes.

Ocorre neste aspecto um instituto semelhante ao da desapropriação, ou seja, todos estamos sujeitos a ver direitos nossos adquiridos compulsoriamente pelo Estado quando necessário à realização do interesse público. Não haveria o concessionário de dispor de um direito individual privado intangível de apropriação compulsória pelo Estado quando necessário ao interesse coletivo. Teríamos, em contrário, a absurda hipótese de um direito individual superior aos interesses coletivos, absoluto, intangível e ilimitado.

De qualquer modo, em momento algum, salvo raras hipóteses penais, nossa ordem constitucional confere ao Estado poder de confisco, de se apropriar compulsoriamente de direitos privados sem justa indenização. A propriedade privada como direito é preservada pela indenização, tanto na desapropriação propriamente dita como nas extinções unilaterais de contratos administrativos.
No que respeita às avenças de concessão, estes são mecanismos clássicos, construídos por antigas decisões do Conselho de Estado Francês (corte suprema daquele país em questões administrativas), que preservam uma relação de equilíbrio entre o direito individual de propriedade e o interesse público de realização dos serviços e atividades públicas. Preserva-se assim, no âmbito das avenças administrativas, os valores republicanos e democráticos que devem orientar nossa vida como nação, sociedade e Estado.

Mesmo com as reformas e “privatizações” promovidas pelo governo FHC, o eixo central deste regime permaneceu em relação às concessões de serviço público em geral.

Apenas um ambiente das atividades públicas põe-se como exceção a este regime jurídico, em razão de dispositivos discretamente aprovados pela Constituinte de 1988: as concessões de rádio e TV!

Provavelmente por uma conjunção de lobby de empresas de telecomunicações agregado ao fato de que muitos constituintes eram proprietários diretos ou indiretos de empresas de rádio e/ou TV, o artigo 223 de nossa Carta magna estabelece regime de concessão de serviço publico absolutamente diverso dos demais serviços públicos concedidos no que tange aos aludidos serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens (rádio e TV).

As concessões de Rádio e TV, por força do parágrafo 4º do aludido dispositivo constitucional, só podem ser extintas, antes de vencido seu prazo, por decisão judicial, enquanto todas as demais concessões públicas podem sê-lo por decisão administrativa.

Mas o pior e realmente relevante: por força do parágrafo 2º do artigo 223 as concessões de rádio e TV são quase de renovação automática, contratos eternos e intangíveis, pois só há hipótese de sua não renovação com aprovação de dois quintos do congresso nacional em votação nominal.

Se os então constituintes, muitos ainda congressistas, tivessem observado valores republicanos em sua decisão haveriam de estipular para a renovação da concessão de Rádio ou TV o mesmo que estipularam para a renovação de qualquer outro contrato público com particular: a necessidade de fazê-lo por licitação aberta a todos os interessados, em observância ao principio da igualdade que emana da forma republicana de gestão estatal.

Ao estipular a renovação automática das concessões de Rádio ou TV, nossa Constituição acaba por estabelecer mecanismo evidente de apropriação privada de serviço público. De um direito contratual público, que careceria ser renovado periodicamente por licitação pública, passamos a ter um direito contratual atípico, que independe de licitação para sua renovação e que só pode deixar de ser realizada por votação nominal de dois quintos do Congresso.

Estabeleceu-se aí inegável imoralidade no âmbito de nossa Carta Magna, uma nódoa em nossa Constituição cidadã. Concessões de Serviço Público se transformaram em capitanias hereditárias de famílias notórias ou de políticos.

Tal situação nada tem de republicana, remetendo à forma como a aristocracia do Estado Imperial se apropriava privadamente dos bens e serviços públicos.

Obviamente, em favor da livre expressão, um contrato de concessão de serviço de rádio ou TV aberta não deve favorecer o poder estatal com os mesmos poderes e prerrogativas que este dispõe em contratos comuns de concessão, isto porque não cabe ao governo em uma sociedade democrática ter tal controle sobre veículos de comunicação. O cotidiano da prestação dos serviços concedidos deve ser realizado de forma livre pelas empresas concessionárias no que tange ao conteúdo da programação, evidentemente.

Mas nada há que justifique a não ocorrência de licitação, promovida por agência independente do Executivo e da Administração central, para escolha periódica do concessionário dos serviços, segundo critérios técnicos e econômicos previamente definidos em emenda constitucional e lei reguladora, produtos de amplo debate social.

Outro aspecto a ser debatido é o de que, em se tratando o Rádio e a TV aberta de serviços estatais, num regime constitucional democrático de Estado Laico como o nosso, se há sentido ,face à noção que liberdade religiosa se preserva não atuando o Estado em favor de uma crença em detrimento de outra, em permitir-se a outorga de tais concessões a entidades religiosas.

Improcedente o uso do argumento da defesa da livre expressão em favor da inexistência de reforma com tais escopos referidos. Em verdade, o regime republicano e democrático exige a correção de tais distorções em nossa Carta Magna, para que nossos serviços de rádio e TV aberta não permaneçam como verdadeiras capitanias hereditárias.

 
 
Pedro Estevam Serrano



Pedro Estevam Serrano é advogado e professor de Direito Constitucional da PUC-SP,mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP.





Fonte: cartacapital.com.br





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